quinta-feira, 10 de março de 2011

AMOR, MERDA AMOR - Moacyr Scliar


O escritor gaúcho Moacyr Scliar, 73 anos, morreu na madrugada de domingo (27/02/2011) no Hospital de Clínicas em Porto Alegre, por falência múltipla de órgãos devido às consequências de um acidente vascular cerebral (AVC).
Seu primeiro livro, publicado em 1962, foi "Histórias de médico em formação", contos baseados em sua experiência como estudante. Em 1968, publicou "O carnaval dos animais", de contos, que considerava de fato sua primeira obra.



Era membro da ABL, publicou mais de 70 livros de diversos gêneros literários – entre eles, os romances “O Exército de um homem só”, “A estranha nação de Rafael Mendes” e “O centauro no jardim” – e teve textos adaptados para cinema, televisão, rádio e teatro, inclusive no exterior. Era colaborador dos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo. Desde 2003, era membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Scliar ganhou três vezes o Prêmio Jabuti – a mais recente, em 2009, com o romance “Manual da paixão solitária”.


EM HOMENAGEM AO GRANDE ESCRITOR SEGUE UM DE SEUS GRANDES CONTOS.

                        AMOR, MERDA AMOR.


Ao entrar no banheiro Alfeu nada mais pretendia do que repetir o ritual que datava já de três anos, desde a época em que, pela primeira vez, encontrara Ofélia. Um ritual só possível graças ao fato de que, no modesto escritório em que trabalhavam, o banheiro era de uso comum – e, feliz coincidência, regularmente freqüentado pela bela, que ali realizava sua sagrada exoneração matinal. Eram minutos de intensa expectativa para Alfeu. Trêmulo, mal contendo a ansiedade, ele ficava à espera, o coração batendo forte. Finalmente, ouvia-se o ruído da descarga e uns instantes depois Ofélia saía, ainda ajeitando-se, e com ar evidentemente prazenteiro. Contendo-se, Alfeu aguardava um prudente quarto de hora – mas fazia-o rezando para que ninguém tivesse a idéia de usar a privada – e então entrava. Fechava a porta, ajoelhava-se no chão e, suspirando de gozo, encostava o rosto no plástico que guarnecia o vaso e no qual sentia, ou imaginava sentir, o calor da pele da amada. Sim, estava apaixonado; mas, tímido, jamais externaria seus sentimentos. O seu segredo ficaria para sempre encerrado entre as quatro paredes do WC.

Naquela terça-feira, porém, uma desagradável surpresa lhe estava reservada. Surpresa que, contudo, ele poderia ter antecipado da reclamação que Ofélia, em tom azedo, fizera ao chefe: pó, seu Ernesto, o vaso está entupido, vê se dá um jeito. Mas entupido ou não, a Alfeu pouco importava: esperou o tempo de costume e então entrou no banheiro. E o que viu dentro do vaso mudou instantaneamente a sua vida.

Fezes, naturalmente. O que mais poderia haver ali? Mas é que, ao atento e apaixonado observador que era Alfeu, um detalhe não passou despercebido.

Eram dois, os cagalhões. Melhor dito: um cagalhão – enorme, perfeitamente cilíndrico, marrom claro – e um (à falta de denominação melhor) fragmento: bem menor, bem mais escuro, a extremidade irregular indicando uma obra não bem completada. Não provinham do mesmo intestino, aquelas fezes. Não bastassem as diferenças entre eles, havia ainda uma outra peculiaridade: no fragmento maior havia restos de feijão. Ora, a aversão de Ofélia ao feijão era bem conhecida, a até objeto de graçolas no escritório. Quem gostava de feijão, quem traçava imensas feijoadas, com paio, torresmo, farofa, quem era o comedor de feijão era o Guilherme, o grandalhão Guilherme que jamais perdia a oportunidade de dirigir uma piadinha a Ofélia: um dia vou comer você como sobremesa de uma feijoada. Ela protestava, mas o protesto era fingido, era uma farsa, como ele agora constatava.

Guilherme estivera no banheiro antes de Ofélia (isto era uma coisa que Alfeu não podia garantir – naquela manhã, infelizmente, atrasara-se – mas podia, com toda a segurança, supor). E logo depois entrara a Ofélia. Por que? Urgente apelo das vísceras? Não. Entrara exatamente porque Guilherme saíra. Entrara para cumprir, ela também, o ritual, para encostar o rosto no plástico e para gemer, amor, amor. Ofélia estava apaixonada pelo asqueroso Guilherme. Tão apaixonada, que deixara aquele fragmento para fazer companhia à obra do grandalhão.

Subitamente enfurecido, Alfeu deu a descarga. O vaso instantaneamente encheu-se de água, que subiu quase até a borda – momentos de apreensão, de terror, mesmo -, depois começou a descer lentamente: a canalização estava de fato entupida. O cagalhão e o fragmento continuavam ali, oscilando docemente na superfície; encontravam-se, repeliam-se, brejeiros, despudorados. E ele, o corno, ali, olhando. Traído pela merda, inerme. Nem afogar aquela imundície ele podia. A única vingança possível seria sepultar os traidores com a sua própria e monumental evacuação. Mas Alfeu sofria de prisão de ventre. Cagar era uma bênção com a qual nem sempre podia contar.

Silenciosamente, abriu a porta do banheiro e, sem olhar para ninguém, voltou à mesa de trabalho. Só não conseguiu conter a lágrima que, caindo sobre o livro-caixa, deixou uma mancha que jamais desapareceria.


Moacyr Scliar

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