quinta-feira, 3 de novembro de 2011

LITERATURA DA UFT 2012 - MORTE E VIDA SEVERINA


MORTE E VIDA SEVERINA, DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

GÊNERO: LÍRICO
CATEGORIA: POESIA
ESTILO: (pos) MODERNISMO – POESIA – REGIONALISMO

João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife, em 9 de janeiro de 1920. Após passar a infância em engenhos de açúcar, estudou com os Irmãos Maristas em sua cidade natal. Em 1942 estreou em livro com Pedra do sono, em que é nítida a influência de Carlos Drummond de Andrade e de Murilo Mendes. Em 1945 publicou o engenheiro, em que se manifestam os rumos definitivos de sua obra. Nesse mesmo ano, prestou concurso para a carreira diplomática, servindo na Espanha, na Inglaterra, na França e no Senegal. Em 1969, foi eleito por unanimidade para a Academia Brasileira de Letras.

O que parte da crítica literária vem chamando de Geração de 45 consiste num grupo de poetas já desligados da revolução artística de 22, que recuperaram certos valores parnasianos e simbolistas, como o rigor formal e o vocabulário erudito. No entanto, à chamada Geração de 45 pertencem poetas não-catalogáveis, o que nos leva a preferir a análise individual desses autores à análise da geração enquanto grupo. Dessa forma, João Cabral de Melo Neto só pertenceria à Geração de 45 se levado em conta o critério cronológico; esteticamente, afasta-se de grupos, por ter aberto caminhos próprios, tornando-se, portanto, um caso particular na evolução da poesia brasileira moderna.

A poesia de João Cabral se caracteriza pela objetividade na constatação da realidade e, em alguns casos, pela tendência ao surrealismo. No nível temático, podemos distinguir em sua poética três grandes preocupações, apresentadas a seguir.

• O Nordeste com sua gente: os retirantes, suas tradições, seu folclore, a herança medieval e os engenhos; de modo muito particular, seu estado natal, Pernambuco, e sua cidade, o Recife. São objeto de verificação e análise os mocambos, os cemitérios e o rio Capibaribe, que aparece, por mais de uma vez, personificado.

• A Espanha e suas paisagens, em que se destacam os pontos em comum com o Nordeste brasileiro. "Sou um regionalista também na Espanha, onde me considero um sevilhano. Não há que civilizar o mundo, há que 'sevilhizar' o mundo", afirma o poeta.

• A Arte e suas várias manifestações: a pintura de Miró, de Picasso e do pernambucano Vicente do Rego Monteiro; a literatura de Paul Valéry, Cesário Verde, Augusto dos Anjos, Graciliano Ramos e Drummond; o futebol de Ademir Meneses e Ademir da Guia; a própria arte poética.

João Cabral apresenta em toda a sua obra uma preocupação com a estética, com a arquitetura da poesia, construindo palavra sobre palavra, como o engenheiro coloca pedra sobre pedra. É o "poeta-engenheiro"; que constrói uma poesia calculada, racional, num evidente combate ao sentimentalismo choroso; para isso, utiliza-se de uma linguagem enxuta, concisa, elíptica, que constitui o próprio falar do sertanejo.

Para João Cabral, o ato de escrever consiste num trabalho de depuração; as palavras são degustadas e selecionadas pelo seu sabor e peso, não podem boiar à toa.

Entretanto, a poesia participante só traria o reconhecimento popular a João Cabral a partir do poema dramático Morte e vida severina (Auto de Natal pernambucano) musicado por Chico Buarque de Holanda e encenado no TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo) na década de 60. O espetáculo percorreu várias capitais européias e brasileiras, ganhou inúmeros prêmios e aproximou, pela primeira vez, do grande público a obra de João Cabral de Melo Neto.


Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto

Morte e Vida Severina, o texto mais popular de João Cabral de Melo Neto, é um auto de natal do folclore pernambucano e, também, da tradição ibérica. Foi escrito entre 1954-55.

Naquela ocasião, Maria Clara Machado, que dirigia o teatro Tablado, no Rio, pedira que João Cabral escrevesse algo sobre retirantes. O poeta escreveu, então, um grupo de poemas dramáticos, para "serem lidos em voz alta" e os dedicou a Rubem Braga e Fernando Sabino, "que tiveram a idéia deste repertório".

Morte Vida Severina tem como subtítulo Auto de Natal pernambucano e tem inspiração nos autos pastoris medievais ibéricos, além de espelhar-se na cultura popular nordestina.

É por esse motivo que, no poema, João Cabral usa preferencialmente o verso heptassilábico, a chamada "medida velha", ou redondilha maior, verso sonoroso e facilmente obtido.

Morte e Vida Severina estruralmente está dividida em 18 partes; no entanto, outra divisão muito nítida pode ser feita quanto à temática: da parte 1 a 9, compreende-se o périplo de Severino até o Recife, seguindo sempre o rio Capibaribe, ou o "fio da vida" que ele se dispõe a seguir, mesmo quando o rio lhe falta e dele só encontra a leve marca no chão crestado pelo sol. Da parte 10 a 18, o retirante está no Recife ou em seus arredores e sofridamente sabe que para ele não há nenhuma saída, a não ser aquela que presenciou no percurso: a morte.
Sua linha narrativa segue dois movimentos que aparecem no título: "morte" e "vida". No primeiro, temos o trajeto de Severino, personagem-protagonista, para Recife, em face da opressão econômico-social, Severino tem a força coletiva de uma personagem típica: representa o retirante nordestino. No segundo movimento, o da "vida", o autor não coloca a euforia da ressurreição da vida dos autos tradicionais, ao contrário, o otimismo que aí ocorre é de confiança no homem, em sua capacidade de resolver os problemas sociais.
O auto de natal Morte e Vida Severina possui estrutura dramática: é uma peça de teatro. Severino, personagem, se transforma em adjetivo, referindo-se à vida severina, à condição severina, à miséria.
O retirante vem do sertão para o litoral, seguindo a trilha do rio Capibaribe. Quando atinge o Recife, depois de encontrar muitas mortes pelo caminho, desengana-se com o sonho da cidade grande e do mar.

Resolve então "saltar fora da ponte e da vida", atirando-se no Capibaribe. Enquanto se prepara para morrer e conversa com seu José, uma mulher anuncia que o filho deste "saltou para dentro da vida" (nasceu).
Severino assiste ao auto de natal (encenação comemorativa do nascimento). Seu José, mestre carpina, tenta demover Severino da resolução de "saltar fora da ponte e da vida".

Texto na íntegra e comentários


O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI


— O meu nome é Severino,

como não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem fala

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias

mulheres de outros tantos,

já finados, Zacarias,

vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas,

e iguais também porque o sangue

que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos

iguais em tudo e na sina:

a de abrandar estas pedras

suando-se muito em cima,

a de tentar despertar

terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar

algum roçado da cinza.



Neste trecho, Severino retirante se apresenta às pessoas e tenta, quando mais possa, logo de início individualizar-se. Para tanto, usa referências pessoais, de sobrenomes e nomes e geográficas. Inútil, ele é apenas um igual a tantos outros Severinos e, desse modo, difícil é desidentificar-se de maneira a distanciar-se deles, os seus iguais em sofrimento, dor, busca, no mesmo espaço geográfico da secura, fome, miséria e ignorância.


A partir do 31o verso, no entanto, sua fala deixa de ser individualizada. Ao observar que "somos muitos Severinos/iguais em tudo na vida:/na mesma cabeça grande/que a custo é que se equilibra..." o retirante funde sua saga à saga dos outros nordestinos, junta-se a eles no destino da retirada, da busca de saídas, da procura, pobreza, sofrimentos e sonhos. E, corajosamente se anuncia:

Mas, para que me conheçam

melhor Vossas Senhorias

e melhor possam seguir

a história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.


ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUE MATEI NÃO!"


— A quem estais carregando,

irmãos das almas,

embrulhado nessa rede?

dizei que eu saiba.

— A um defunto de nada,

irmão das almas,

que há muitas horas viaja

à sua morada.

— E sabeis quem era ele,

irmãos das almas,

sabeis como ele se chama

ou se chamava?

— Severino Lavrador,

irmão das almas,

Severino Lavrador,

mas já não lavra.

— E de onde que o estais trazendo,

irmãos das almas,

onde foi que começou

vossa jornada?

— Onde a Caatinga é mais seca,

irmão das almas,

onde uma terra que não dá

nem planta brava.

— E foi morrida essa morte,

irmãos das almas,

essa foi morte morrida

ou foi matada?

— Até que não foi morrida,

irmão das almas,

esta foi morte matada,

numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada,

irmão das almas,

e com que foi que o mataram,

com faca ou bala?

— Este foi morto de bala,

irmão das almas,

mais garantido é de bala,

mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou,

irmãos das almas,

quem contra ele soltou

essa ave-bala?

— Ali é difícil dizer,

irmão das almas,

sempre há uma bala voando

desocupada.

— E o que havia ele feito,

irmãos das almas,

e o que havia ele feito

contra a tal pássara?

— Ter um hectares de terra,

irmão das almas,

de pedra e areia lavada

que cultivava.

— Mas que roças que ele tinha,

irmãos das almas,

que podia ele plantar

na pedra avara?

— Nos magros lábios de areia,

irmão das almas,

os intervalos das pedras,

plantava palha.

— E era grande sua lavoura,

irmãos das almas,

lavoura de muitas covas,

tão cobiçada?

— Tinha somente dez quadros,

irmão das almas,

todas nos ombros da serra,

nenhuma várzea.

— Mas então por que o mataram,

irmãos das almas,

mas então por que o mataram

com espingarda?

— Queria mais espalhar-se,

irmão das almas,

queria voar mais livre

essa ave-bala.

— E agora o que passará,

irmãos das almas,

o que é que acontecerá

contra a espingarda?

— Mais campo tem para soltar,

irmão das almas,

tem mais onde fazer voar

as filhas-bala.

— E onde o levais a enterrar,

irmãos das almas,

com a semente de chumbo

que tem guardada?

— Ao cemitério de Torres,

irmão das almas,

que hoje se diz Toritama,

de madrugada.

— E poderei ajudar,

irmãos das almas?

vou passar por Toritama,

é minha estrada.

— Bem que poderá ajudar,

irmão das almas,

é irmão das almas quem ouve

nossa chamada.

— E um de nós pode voltar,

irmão das almas,

pode voltar daqui mesmo

para sua casa.

— Vou eu, que a viagem é longa,

irmãos das almas,

é muito longa a viagem

e a serra é alta.

— Mais sorte tem o defunto,

irmãos das almas,

pois já não fará na volta

a caminhada.

— Toritama não cai longe,

irmão das almas,

seremos no campo santo

de madrugada.

— Partamos enquanto é noite,

irmão das almas,

que é o melhor lençol dos mortos

noite fechada.


Neste trecho Severino inicia o caminho e encontra dois homens que carregam um defunto numa rede. São os "irmãos das almas", comuns no sertão nordestino: a eles cabe, gratuitamente, lavar e vestir o defunto, velar e, posteriormente enterrá-lo em lugar digno.

 defunto é Severino Lavrador "mas já não lavra" e os "irmãos das almas" o estão trazendo da caatinga, morto à bala, numa emboscada. Inquieto, Severino pergunta o porquê da morte. E fica sabendo que o mataram por questão de terra.

esse é apenas o primeiro dos muitos Severinos que encontrará na viagem.


O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO

— Antes de sair de casa

aprendi a ladainha

das vilas que vou passar

na minha longa descida.

Sei que há muitas vilas grandes,

cidades que elas são ditas;

sei que há simples arruados,

sei que há vilas pequeninas,

todas formando um rosário

cujas contas fossem vilas,

todas formando um rosário

de que a estrada fosse a linha.

Devo rezar tal rosário

até o mar onde termina,

saltando de conta em conta,

passando de vila em vila.

Vejo agora: não é fácil

seguir essa ladainha;

entre uma conta e outra conta,

entre uma a outra ave-maria,

há certas paragens brancas,

de planta e bicho vazias,

vazias até de donos,

e onde o pé se descaminha.

Não desejo emaranhar

o fio de minha linha

nem que se enrede no pêlo

hirsuto desta caatinga.

Pensei que seguindo o rio

eu jamais me perderia:

ele é o caminho mais certo,

de todos o melhor guia.

Mas como segui-lo agora

que interrompeu a descida?

Vejo que o Capibaribe,

como os rios lá de cima,

é tão pobre que nem sempre

pode cumprir sua sina

e no verão também corta,

com pernas que não caminham.

Tenho de saber agora

qual a verdadeira via

entre essas que escancaradas

frente a mim se multiplicam.

Mas não vejo almas aqui,

nem almas mortas nem vivas;

ouço somente à distância

o que parece cantoria.

Será novena de santo,

será algum mês-de-Maria;

quem sabe até se uma festa

ou uma dança não seria?

o percurso que reinicia, Severino tem medo de perder-se porque o rio foi "cortado"pelo Verão, já não há indícios nele, quase: "Mas como segui-lo agora/que interrompeu a descida?" Verifique que no trecho aparecem com freqüência as palavras 'fio", "linha"e "rosário", o que nos remete ao mito grego das três Parcas, donas absolutas da vida humana, elas tecem o fio da existência, medem-no e, por fim, o cortam quando queiram.

Perdido e atônito, Severino ouve ao longe uma cantoria. É outro Severino que encontra. E, mais uma vez, encontra-o sob o signo da morte que permeia a sua vida.

NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE FORA,VAI PARODIANDO AS PALAVRAS DOS CANTADORES

 Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas...

— Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem da Conceição.

— Finado Severino, etc. ...

— Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação.

— Finado Severino, etc. ...

— Dize que coisas de não, ocas, leves: como o caixão, que ainda deves.

— Uma excelência dizendo que a hora é hora.

— Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora.

— Duas excelências...

— ... dizendo é a hora da plantação.

— Ajunta os carregadores...

— ... que a terra vai colher a mão.



A cantoria se resume em cantar as "excelências"do defunto. Excelências quer dizer "qualidades". Cantando, os sertanejos recomendam o defunto para que quando ele atravesse o Jordão possa e seja cercado pelos demônios possa dizer o que leva da vida. É sempre pouca coisa: capuz, cordão, a Virgem, fome, sede , privação.
É interessante notar, no entanto, que a morte é sempre compartilhada. O camponês nunca está sozinho quando morre, outras pessoas, solidariamente, tomam conta dele, compartilham o momento.

CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA.

— Desde que estou retirando

só a morte vejo ativa,

só a morte deparei

e às vezes até festiva;

só a morte tem encontrado

quem pensava encontrar vida,

e o pouco que não foi morte

foi de vida severina

(aquela vida que é menos

vivida que defendida,

e é ainda mais severina

para o homem que retira).

Penso agora: mas porque

parar aqui eu não podia

e como o Capibaribe

interromper minha linha?

ao menos até que as águas

de uma próxima invernia

me levem direto ao mar

ao refazer sua rotina?

Na verdade, por uns tempos,

parar aqui eu bem podia

e retomar a viagem

quando vencesse a fadiga.

Ou será que aqui cortando

agora minha descida

já não poderei seguir

nunca mais em minha vida?

(será que a água destes poços

é toda aqui consumida

pelas roças, pelos bichos,

pelo sol com suas línguas?

será que quando chegar

o rio da nova invernia

um resto de água no antigo

sobrará nos poços ainda?)

Mas isso depois verei:

tempo há para que decida;

primeiro é preciso achar

um trabalho de que viva.

Vejo uma mulher na janela,

ali, que se não é rica,

parece remediada

ou dona de sua vida:

vou saber se de trabalho

poderá me dar notícia.

everino, por um tempo, pensa em parar a viagem porque "só a morte vejo ativa"; pensa em procurar trabalho onde se encontra. Veja a comparação, já nos versos finais entre "vida"e "linha"; e note que o verbo "cortar"também se faz presente: é outro remetimento ao mito das três Parcas.
Parar, procurar trabalho... note aqui que o retirante não deseja emigrar, deixar a terra de origem. Ele vê uma mulher na janela e pensa em pedir a ela notícias sobre um trabalho qualquer.

DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

— Muito bom dia, senhora,

que nessa janela está;

sabe dizer se é possível

algum trabalho encontrar?

— Trabalho aqui nunca falta

a quem sabe trabalhar;

o que fazia o compadre

na sua terra de lá?

— Pois fui sempre lavrador,

lavrador de terra má;

não há espécie de terra

que eu não possa cultivar.

— Isso aqui de nada adianta,

pouco existe o que lavrar;

mas diga-me, retirante,

que mais fazia por lá?

— Também lá na minha terra

de terra mesmo pouco há;

mas até a calva da pedra

sinto-me capaz de arar.

— Também de pouco adianta,

nem pedra há aqui que amassar;

diga-me ainda, compadre,

que mais fazia por lá?

— Conheço todas as roças

que nesta chã podem dar:

o algodão, a mamona,

a pita, o milho, o caroá.

— Esses roçados o banco

já não quer financiar;

mas diga-me, retirante,

o que mais fazia lá?

— Melhor do que eu ninguém

sei combater, quiçá,

tanta planta de rapina

que tenho visto por cá.

— Essas plantas de rapina

são tudo o que a terra dá;

diga-me ainda, compadre;

que mais fazia por lá?

— Tirei mandioca de chãs

que o vento vive a esfolar

e de outras escalavradas

pela seca faca solar.

— Isto aqui não é Vitória

nem é Glória do Goitá;

e além da terra, me diga,

que mais sabe trabalhar?

— Sei também tratar de gado,

entre urtigas pastorear:

gado de comer do chão

ou de comer ramas no ar.

— Aqui não é Surubim

nem Limoeiro, oxalá!

mas diga-me, retirante,

que mais fazia por lá?

— Em qualquer das cinco tachas

de um banguê sei cozinhar;

sei cuidar de uma moenda,

de uma casa de purgar.

— Com a vinda das usinas

há poucos engenhos já;

nada mais o retirante

aprendeu a fazer lá?

— Ali ninguém aprendeu

outro ofício, ou aprenderá:

mas o sol, de sol a sol,

bem se aprende a suportar.

— Mas isso então será tudo

em que sabe trabalhar?

vamos, diga, retirante,

outras coisas saberá.

— Deseja mesmo saber

o que eu fazia por lá?

comer quando havia o quê

e, havendo ou não, trabalhar.

— Essa vida por aqui

é coisa familiar;

mas diga-me retirante,

sabe benditos rezar?

sabe cantar excelências,

defuntos encomendar?

sabe tirar ladainhas,

sabe mortos enterrar?

— Já velei muitos defuntos,

na serra é coisa vulgar;

mas nunca aprendi as rezas,

sei somente acompanhar.

— Pois se o compadre soubesse

rezar ou mesmo cantar,

trabalhávamos a meias,

que a freguesia bem dá.

— Agora se me permite

minha vez de perguntar:

como senhora, comadre,

pode manter o seu lar?

— Vou explicar rapidamente,

logo compreenderá:

como aqui a morte é tanta,

vivo de a morte ajudar.

— E ainda se me permite

que volte a perguntar:

é aqui uma profissão

trabalho tão singular?

— É, sim, uma profissão,

e a melhor de quantas há:

sou de toda a região

rezadora titular.

— E ainda se me permite

mais outra vez indagar:

é boa essa profissão

em que a comadre ora está?

— De um raio de muitas léguas

vem gente aqui me chamar;

a verdade é que não pude

queixar-me ainda de azar.

— E se pela última vez

me permite perguntar:

não existe outro trabalho

para mim nesse lugar?

— Como aqui a morte é tanta,

só é possível trabalhar

nessas profissões que fazem

da morte ofício ou bazar.

Imagine que outra gente

de profissão similar,

farmacêuticos, coveiros,

doutor de anel no anular,

remando contra a corrente

da gente que baixa ao mar,

retirantes às avessas,

sobem do mar para cá.

Só os roçados da morte

compensam aqui cultivar,

e cultivá-los é fácil:

simples questão de plantar;

não se precisa de limpa,

de adubar nem de regar;

as estiagens e as pragas

fazem-nos mais prosperar;

e dão lucro imediato;

nem é preciso esperar

pela colheita: recebe-se

na hora mesma de semear.

 retirante dirige-se à mulher da janela, dando-lhe bom dia e perguntando se há trabalho por ali; curiosa, ela lhe pergunta que tipo de trabalho ele fazia "por lá". Severino diz que foi sempre lavrador de "terra má". A mulher vai fazendo perguntas, ao que ele responde o que sabe fazer: arar até a "calva da pedra", plantar mamona, algodão, pita, milho e caroá... A mulher diz aqueles roçados o banco nem quer mais financiar. Ele anuncia que sabe tratar de gado e cuidar das casas de purgar, o que não interessa à mulher.



Mas há uma resposta magnífica que Severino dá a ela, por fim:



"deseja mesmo saber

o que eu fazia por lá?

Comer quando havia o quê

e, havendo ou não, trabalhar."



A mulher, então, informa-lhe que ali só há trabalho para os ofícios que envolvam a morte: benditos e ladainhas para rezar, cantar as excelências de um defunto. E se apresenta como "rezadora titular"da região.. Só há trabalho ali nos "roçados da morte", que dão lucros imediatos, na hora de semear, ou seja, quando "se planta"no chão o defunto.



O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM



— Bem me diziam que a terra

se faz mais branda e macia

quando mais do litoral

a viagem se aproxima.

Agora afinal cheguei

nesta terra que diziam.

Como ela é uma terra doce

para os pés e para a vista.

Os rios que correm aqui

têm a água vitalícia.

Cacimbas por todo lado;

cavando o chão, água mina.

Vejo agora que é verdade

o que pensei ser mentira.

Quem sabe se nesta terra

não plantarei minha sina?

Não tenho medo de terra

(cavei pedra toda a vida),

e para quem lutou a braço

contra a piçarra da Caatinga

será fácil amansar

esta aqui, tão feminina.

Mas não avisto ninguém,

só folhas de cana fina;

somente ali à distância

aquele bueiro de usina;

somente naquela várzea

um banguê velho em ruína.

Por onde andará a gente

que tantas canas cultiva?

Feriando: que nesta terra

tão fácil, tão doce e rica,

não é preciso trabalhar

todas as horas do dia,

os dias todos do mês,

os meses todos da vida.

Decerto a gente daqui

jamais envelhece aos trinta

nem sabe da morte em vida,

vida em morte, severina;

e aquele cemitério ali,

branco na verde colina,

decerto pouco funciona

e poucas covas aninha.



Severino chega à Zona da Mata e se espanta porque Os rios que correm aqui/têm a água vitalícia. E vê a Usina. Apesar de tanta riqueza, quase não vê gente e pressupõe que todos estejam "feriando". Imagina Severino que ali tudo seja fácil, "decerto a gente daqui/jamais envelhece aos trinta"... Engana-se: o lugar está vazio porque as usinas prescindem dos homens, tudo é mecânico, nada requer o trabalho braçal de gente igual a ele.

Prossegue Severino o seu caminho.

ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO



— Essa cova em que estás,

com palmos medida,

é a cota menor

que tiraste em vida.

— É de bom tamanho,

nem largo nem fundo,

é a parte que te cabe

deste latifúndio.

— Não é cova grande,

é cova medida,

é a terra que querias

ver dividida.

— É uma cova grande

para teu pouco defunto,

mas estarás mais ancho

que estavas no mundo.

— É uma cova grande

para teu defunto parco,

porém mais que no mundo

te sentirás largo.

— É uma cova grande

para tua carne pouca,

mas a terra dada

não se abre a boca.

— Viverás, e para sempre,

na terra que aqui aforas:

e terás enfim tua roça.

— Aí ficarás para sempre,

livre do sol e da chuva,

criando tuas saúvas.

— Agora trabalharás

só para ti, não a meias,

como antes em terra alheia.

— Trabalharás uma terra

da qual, além de senhor,

serás homem de eito e trator.

— Trabalhando nessa terra,

tu sozinho tudo empreitas:

serás semente, adubo, colheita.

— Trabalharás numa terra

que também te abriga e te veste:

embora com o brim do Nordeste.

— Será de terra tua derradeira camisa:

te veste, como nunca em vida.

— Será de terra e tua melhor camisa:

te veste e ninguém cobiça.

— Terás de terra

completo agora o teu fato:

e pela primeira vez, sapato.

— Como és homem,

a terra te dará chapéu:

fosses mulher, xale ou véu.

— Tua roupa melhor

será de terra e não de fazenda:

não se rasga nem se remenda.

— Tua roupa melhor

e te ficará bem cingida:

como roupa feita à medida.

— Esse chão te é bem conhecido

(bebeu teu suor vendido).

— Esse chão te é bem conhecido

(bebeu o moço antigo).

— Esse chão te é bem conhecido

(bebeu tua força de marido).

— Desse chão és bem conhecido

(através de parentes e amigos).

— Desse chão és bem conhecido

(vive com tua mulher, teus filhos).

— Desse chão és bem conhecido

(te espera de recém-nascido).

— Não tens mais força contigo:

deixa-te semear ao comprido.

— Já não levas semente viva:

teu corpo é a própria maniva.

— Não levas rebolo de cana:

és o rebolo, e não de caiana.

— Não levas semente na mão:

és agora o próprio grão.

— Já não tens força na perna:

deixa-te semear na coveta.

— Já não tens força na mão:

deixa-te semear no leirão.

— Dentro da rede não vinha nada,

só tua espiga debulhada.

— Dentro da rede vinha tudo,

só tua espiga no sabugo.

— Dentro da rede coisa vasqueira,

só a maçaroca banguela.

— Dentro da rede coisa pouca,

tua vida que deu sem soca.

— Na mão direita um rosário,

milho negro e ressecado.

— Na mão direita somente

o rosário, seca semente.

— Na mão direita, de cinza,

o rosário, semente maninha.

— Na mão direita o rosário,

semente inerte e sem salto.

— Despido vieste no caixão,

despido também se enterra o grão.

— De tanto te despiu a privação

que escapou de teu peito a viração.

— Tanta coisa despiste em vida

que fugiu de teu peito a brisa.

— E agora, se abre o chão e te abriga,

lençol que não tiveste em vida.

— Se abre o chão e te fecha,

dando-te agora cama e coberta.

— Se abre o chão e te envolve,

como mulher com quem se dorme.

Este trecho é o mais conhecido da peça de João Cabral, é a parte mais terrível do auto. Lá está outro Severino morto, levado pelos amigos ao cemitério. Cada um deles canta uma parte da despedida. Há aqui a mais lúcida condenação do poeta: os latifúndios matam o homem que se dispõe a lutar pela terra. E os consomem como "espigas debulhadas", roendo-lhes as forças, a mocidade, a fibra de trabalhador.

Esse Severino tem agora a cova em palmos medida, lugar onde cabe e se aninha o que antes queria a sua parte na terra.

Todos os amigos questionam a maneira como os patrões tratam seus empregados, explorando-lhes a força de trabalho, pagando-lhes uma ninharia.

É o momento mais dramático do poema de João Cabral e detalha bem a vida do nordestino camponês, lavrador de terra sempre má porque explorado por seus patrões metonimicamente representados pelo latifúndio.



O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE

— Nunca esperei muita coisa,

digo a Vossas Senhorias.

O que me fez retirar

não foi a grande cobiça;

o que apenas busquei

foi defender minha vida

de tal velhice que chega

antes de se inteirar trinta;

se na serra vivi vinte,

se alcancei lá tal medida,

o que pensei, retirando,

foi estendê-la um pouco ainda.

Mas não senti diferença

entre o Agreste e a Caatinga,

e entre a Caatinga e aqui a Mata

a diferença é a mais mínima.

Está apenas em que a terra

é por aqui mais macia;

está apenas no pavio,

ou melhor, na lamparina:

pois é igual o querosene

que em toda parte ilumina,

e quer nesta terra gorda

quer na serra, de caliça,

a vida arde sempre, com

a mesma chama mortiça.

Agora é que compreendo

porque em paragens tão ricas

o rio não corta em poços

como ele faz na Caatinga:

vivi a fugir dos remansos

a que a paisagem o convida,

com medo de se deter

grande que seja a fadiga.

Sim, o melhor é apressar

o fim desta ladainha,

o fim do rosário de nomes

que a linha do rio enfia;

é chegar logo ao Recife,

derradeira ave-maria

do rosário, derradeira

invocação da ladainha,

Recife, onde o rio some

e esta minha viagem se fina.


De novo, aqui, as palavras "rio", "fio"e "linha" podem ser observadas. Os advérbios "aqui" (Zona da mata) e "lá" (sertão) se contrapõem, Severino chega ao Recife e anuncia que sua viagem acabou. Ele veio como o rio em busca do mar, porque o Recife sempre foi a porta pela qual os nordestinos deixavam sua região.

CHEGANDO AO RECIFE, O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO
E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS

— O dia de hoje está difícil;

não sei onde vamos parar.

Deviam dar um aumento,

ao menos aos deste setor de cá.

As avenidas do centro são melhores,

mas são para os protegidos:

há sempre menos trabalho

e gorjetas pelo serviço;

e é mais numeroso o pessoal

(toma mais tempo enterrar os ricos).

— Pois eu me daria por contente

se me mandassem para cá.

Se trabalhasses no de Casa Amarela

não estarias a reclamar.

De trabalhar no de Santo Amaro

deve alegrar-se o colega

porque parece que a gente

que se enterra no de Casa Amarela

está decidida a mudar-se

toda para debaixo da terra.

— É que o colega ainda não viu

o movimento: não é o que se vê.

Fique-se por aí um momento

e não tardarão a aparecer

os defuntos que ainda hoje

vão chegar (ou partir, não sei).

As avenidas do centro,

onde se enterram os ricos,

são como o porto do mar:

não é muito ali o serviço:

no máximo um transatlântico

chega ali cada dia,

com muita pompa, protocolo,

e ainda mais cenografia.

Mas este setor de cá

é como a estação dos trens:

diversas vezes por dia

chega o comboio de alguém.

— Mas se teu setor é comparado

à estação central dos trens,

o que dizer de Casa Amarela

onde não pára o vaivém?

Pode ser uma estação

mas não estação de trem:

será parada de ônibus,

com filas de mais de cem.

— Então por que não pedes,

já que és de carreira, e antigo,

que te mandem para Santo Amaro

se achas mais leve o serviço?

Não creio que te mandassem

para as belas avenidas

onde estão os endereços

e o bairro da gente fina:

isto é, para o bairro dos usineiros,

dos políticos, dos banqueiros,

e no tempo antigo, dos banguezeiros

(hoje estes se enterram em carneiros);

bairro também dos industriais,

dos membros das associações patronais

e dos que foram mais horizontais

nas profissões liberais.

Difícil é que consigas

aquele bairro, logo de saída.

— Só pedi que me mandassem

para as urbanizações discretas,

com seus quarteirões apertados,

com suas cômodas de pedra.

— Esse é o bairro dos funcionários,

inclusive extranumerários,

contratados e mensalistas

(menos os tarefeiros e diaristas).

Para lá vão os jornalistas,

os escritores, os artistas;

ali vão também os bancários,

as altas patentes dos comerciários,

os lojistas, os boticários,

os localizados aeroviários

e os de profissões liberais

que não se liberaram jamais.

— Também um bairro dessa gente

temos no de Casa Amarela:

cada um em seu escaninho,

cada um em sua gaveta,

com o nome aberto na lousa

quase sempre em letras pretas.

Raras as letras douradas,

raras também as gorjetas.

— Gorjetas aqui, também,

só dá mesmo a gente rica,

em cujo bairro não se pode

trabalhar em mangas de camisa;

onde se exige quépi

e farda engomada e limpa.

— Mas não foi pelas gorjetas,

não, que vim pedir remoção:

é porque tem menos trabalho

que quero vir para Santo Amaro;

aqui ao menos há mais gente

para atender a freguesia,

para botar a caixa cheia

dentro da caixa vazia.

— E que disse o Administrador,

se é que te deu ouvido?

— Que quando apareça a ocasião

atenderá meu pedido.

— E do senhor Administrador

isso foi tudo que arrancaste?

— No de Casa Amarela me deixou

mas me mudou de arrabalde.

— E onde vais trabalhar agora,

qual o subúrbio que te cabe?

— Passo para o dos industriários,

que é também o dos ferroviários,

de todos os rodoviários

e praças-de-pré dos comerciários.

— Passas para o dos operários,

deixas o dos pobres vários;

melhor: não são tão contagiosos

e são muito menos numerosos.

— É, deixo o subúrbio dos indigentes

onde se enterra toda essa gente

que o rio afoga na preamar

e sufoca na baixa-mar.

— É a gente sem instituto,

gente de braços devolutos;

são os que jamais usam luto

e se enterram sem salvo-conduto.

— É a gente dos enterros gratuitos

e dos defuntos ininterruptos.

— É a gente retirante

que vem do Sertão de longe.

— Desenrolam todo o barbante

e chegam aqui na jante.

— E que então, ao chegar,

não têm mais o que esperar.

— Não podem continuar

pois têm pela frente o mar.

— Não têm onde trabalhar

e muito menos onde morar.

— E da maneira em que está

não vão ter onde se enterrar.

— Eu também, antigamente,

fui do subúrbio dos indigentes,

e uma coisa notei

que jamais entenderei:

essa gente do Sertão

que desce para o litoral, sem razão,

fica vivendo no meio da lama,

comendo os siris que apanha;

pois bem: quando sua morte chega,

temos que enterrá-los em terra seca.

— Na verdade, seria mais rápido

e também muito mais barato

que os sacudissem de qualquer ponte

dentro do rio e da morte.

— O rio daria a mortalha

e até um macio caixão de água;

e também o acompanhamento

que levaria com passo lento

o defunto ao enterro final

a ser feito no mar de sal.

— E não precisava dinheiro,

e não precisava coveiro,

e não precisava oração

e não precisava inscrição.

— Mas o que se vê não é isso:

é sempre nosso serviço

crescendo mais cada dia;

morre gente que nem vivia.

— E esse povo lá de riba

de Pernambuco, da Paraíba,

que vem buscar no Recife

poder morrer de velhice,

encontra só, aqui chegando

cemitérios esperando.

— Não é viagem o que fazem,

vindo por essas caatingas, vargens;

aí está o seu erro:

vêm é seguindo seu próprio enterro.



Cansado da viagem, Severino senta-se rente ao muro de um cemitério e ouve a conversa entre dois coveiros. Eles falam de morte, o que permeia esta jornada severina, e impressionam o retirante a veemência de suas falas ríspidas que anunciam diferenças entre enterrar ricos e pobres.

Para o cemitério de Santo Antônio vão os homens como jornalistas, escritores, artistas e os de profissão liberal; para os da Casa Amarela, onde agora Severino está, vão os miseráveis de toda a sorte, "gente dos enterros gratuitos".

Um dos coveiros comenta que o rio Capibaribe devia dar-lhes uma mortalha macia, sem que precisassem de dinheiro ou coveiro e assusta o retirante ao anunciar que quando vêm da caatinga, "Vêm seguindo o próprio enterro."

O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE

— Nunca esperei muita coisa,

é preciso que eu repita.

Sabia que no rosário

de cidade e de vilas,

e mesmo aqui no Recife

ao acabar minha descida,

não seria diferente

a vida de cada dia:

que sempre pás e enxadas

foices de corte e capina,

ferros de cova, estrovengas

o meu braço esperariam.

Mas que se este não mudasse

seu uso de toda vida,

esperei, devo dizer,

que ao menos aumentaria

na quartinha, a água pouca,

dentro da cuia, a farinha,

o algodãozinho da camisa,

ao meu aluguel com a vida.

E chegando, aprendo que,

nessa viagem que eu fazia,

sem saber desde o Sertão,

meu próprio enterro eu seguia.

Só que devo ter chegado

adiantado de uns dias;

o enterro espera na porta:

o morto ainda está com vida.

A solução é apressar

a morte a que se decida

e pedir a este rio,

que vem também lá de cima,

que me faça aquele enterro

que o coveiro descrevia:

caixão macio de lama,

mortalha macia e líquida,

coroas de baronesa

junto com flores de aninga,

e aquele acompanhamento

de água que sempre desfila

(que o rio, aqui no Recife,

não seca, vai toda a vida).
Esta parte é um lamento com a quebra das expectativas de Severino. O que ele deseja é pouca coisa: um trabalho, água, farinha, algodãozinho da camisa, dinheiro pro aluguel. Sonhos de um homem simples que se desmancharam ao saber que viera seguindo o próprio enterro e que sua vida está por um triz. Imagina que tenha chegado adiantado uns dias, apenas.



APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO
— Seu José, mestre carpina,

que habita este lamaçal,

sabes me dizer se o rio

a esta altura dá vau?

sabe me dizer se é funda

esta água grossa e carnal?

— Severino, retirante,

jamais o cruzei a nado;

quando a maré está cheia

vejo passar muitos barcos,

barcaças, alvarengas,

muitas de grande calado.

— Seu José, mestre carpina,

para cobrir corpo de homem

não é preciso muito água:

basta que chega ao abdome,

basta que tenha fundura

igual à de sua fome.

— Severino, retirante,

pois não sei o que lhe conte;

sempre que cruzo este rio

costumo tomar a ponte;

quanto ao vazio do estômago,

se cruza quando se come.

— Seu José, mestre carpina,

e quando ponte não há?

quando os vazios da fome

não se tem com que cruzar?

quando esses rios sem água

são grandes braços de mar?

— Severino, retirante,

o meu amigo é bem moço;

sei que a miséria é mar largo,

não é como qualquer poço:

mas sei que para cruzá-la

vale bem qualquer esforço.

— Seu José, mestre carpina,

e quando é fundo o perau?

quando a força que morreu

nem tem onde se enterrar,

por que ao puxão das águas

não é melhor se entregar?

— Severino, retirante,

o mar de nossa conversa

precisa ser combatido,

sempre, de qualquer maneira,

porque senão ele alaga

e devasta a terra inteira.

— Seu José, mestre carpina,

e em que nos faz diferença

que como frieira se alastre,

ou como rio na cheia,

se acabamos naufragados

num braço do mar miséria?

— Severino, retirante,

muita diferença faz

entre lutar com as mãos

e abandoná-las para trás,

porque ao menos esse mar

não pode adiantar-se mais.

— Seu José, mestre carpina,

e que diferença faz

que esse oceano vazio

cresça ou não seus cabedais,

se nenhuma ponte mesmo

é de vencê-lo capaz?

— Seu José, mestre carpina,

que lhe pergunte permita:

há muito no lamaçal

apodrece a sua vida?

e a vida que tem vivido

foi sempre comprada à vista?

— Severino, retirante,

sou de Nazaré da Mata,

mas tanto lá como aqui

jamais me fiaram nada:

a vida de cada dia

cada dia hei de comprá-la.

— Seu José, mestre carpina,

e que interesse, me diga,

há nessa vida a retalho

que é cada dia adquirida?

espera poder um dia

comprá-la em grandes partidas?

— Severino, retirante,

não sei bem o que lhe diga:

não é que espere comprar

em grosso tais partidas,

mas o que compro a retalho

é, de qualquer forma, vida.

— Seu José, mestre carpina,

que diferença faria

se em vez de continuar

tomasse a melhor saída:

a de saltar, numa noite,

fora da ponte e da vida?

Esse também é um momento dramático e terrível do auto: Severino encontra-se com seu José, mestre carpina. Não é preciso dizer com quem, alegoricamente, ele se encontrou... Morando nos alagados, nas casas palafitadas, mocambos do Recife, seu José é interrogado pelo retirante.

A metáfora "saltar da ponte e da vida", renunciar à existência, não surpreende o homem que ouve a conversa do retirante a lhe perguntar sobre o rio, também metaforicamente aí significando a própria existência, com suas águas fundas e lodosas. É um diálogo figurado, intenso. A "vida de retalho", pequena e medida.

Mas os dois são surpreendidos por uma notícia.

UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ

— Compadre José, compadre,

que na relva estais deitado:

conversais e não sabeis

que vosso filho é chegado?

Estais aí conversando

em vossa prosa entretida:

não sabeis que vosso filho

saltou para dentro da vida?

Saltou para dento da vida

ao dar o primeiro grito;

e estais aí conversando;

pois sabei que ele é nascido.



A mulher anuncia o nascimento do filho do carpinteiro.

E você já sabe o que esta representação significa: o nascimento de outro Severino, aproximado, o auto, dos modelos pastoris das peças medievais. É, metaforicamente, o nascimento de Jesus, em meio à pobreza. O subtítulo do poema se explica agora: auto de Natal pernambucano.

APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS ETC.
— Todo o céu e a terra

lhe cantam louvor.

Foi por ele que a maré

esta noite não baixou.

— Foi por ele que a maré

fez parar o seu motor:

a lama ficou coberta

e o mau-cheiro não voou.

— E a alfazema do sargaço,

ácida, desinfetante,

veio varrer nossas ruas

enviada do mar distante.

— E a língua seca de esponja

que tem o vento terral

veio enxugar a umidade

do encharcado lamaçal.

— Todo o céu e a terra

lhe cantam louvor

e cada casa se torna

num mocambo sedutor.

— Cada casebre se torna

no mocambo modelar

que tanto celebram os

sociólogos do lugar.

— E a banda de maruins

que toda noite se ouvia

por causa dele, esta noite,

creio que não irradia.

— E este rio de água cega,

ou baça, de comer terra,

que jamais espelha o céu,

hoje enfeitou-se de estrelas.



Aproximam-se todos para louvar o menino recém-nascido, tal como os reis magos. E vão saudá-lo dentro da pobreza, como ela lhes permitirá.



COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO



— Minha pobreza tal é

que não trago presente grande:

trago para a mãe caranguejos

pescados por esses mangues;

mamando leite de lama

conservará nosso sangue.

— Minha pobreza tal é

que coisa não posso ofertar:

somente o leite que tenho

para meu filho amamentar;

aqui são todos irmãos,

de leite, de lama, de ar.

— Minha pobreza tal é

que não tenho presente melhor:

trago papel de jornal

para lhe servir de cobertor;

cobrindo-se assim de letras

vai um dia ser doutor.

— Minha pobreza tal é

que não tenho presente caro:

como não posso trazer

um olho d'água de Lagoa do Carro,

trago aqui água de Olinda,

água da bica do Rosário.

— Minha pobreza tal é

que grande coisa não trago:

trago este canário da terra

que canta corrido e de estalo.

— Minha pobreza tal é

que minha oferta não é rica:

trago daquela bolacha d'água

que só em Paudalho se fabrica.

— Minha pobreza tal é

que melhor presente não tem:

dou este boneco de barro

de Severino de Tracunhaém.

— Minha pobreza tal é

que pouco tenho o que dar:

dou da pitu que o pintor Monteiro

fabricava em Gravatá.

— Trago abacaxi de Goiana

e de todo o Estado rolete de cana.

— Eis ostras chegadas agora,

apanhadas no cais da Aurora.

— Eis tamarindos da Jaqueira

e jaca da Tamarineira.

— Mangabas do Cajueiro

e cajus da Mangabeira.

— Peixe pescado no Passarinho,

carne de boi dos Peixinhos.

— Siris apanhados no lamaçal

que há no avesso da rua Imperial.

— Mangas compradas nos quintais ricos

do Espinheiro e dos Aflitos.

— Goiamuns dados pela gente pobre

da Avenida Sul e da Avenida Norte.

Cada um entrega ao menino o que tem de mais precioso: caranguejos, leite, água, um canário da terra, bolacha d'água, boneco de barro, abacaxi, tamarindos, jacas, mangabas e cajus. Ainda: siris, mangas e goiamuns.

São as ofertas dos homens simples, que tiram de si mesmos os melhores presentes para saudar a vida que começa. Outra vez a solidariedade é posta à palma, mostrada e demonstrada, largamente exercida por todos.



FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS
— Atenção peço, senhores,

para esta breve leitura:

somos ciganas do Egito,

lemos a sorte futura.

Vou dizer todas as coisas

que desde já posso ver

na vida desse menino

acabado de nascer:

aprenderá a engatinhar

por aí, com aratus,

aprenderá a caminhar

na lama, como goiamuns,

e a correr o ensinarão

o anfíbios caranguejos,

pelo que será anfíbio

como a gente daqui mesmo.

Cedo aprenderá a caçar:

primeiro, com as galinhas,

que é catando pelo chão

tudo o que cheira a comida;

depois, aprenderá com

outras espécies de bichos:

com os porcos nos monturos,

com os cachorros no lixo.

Vejo-o, uns anos mais tarde,

na ilha do Maruim,

vestido negro de lama,

voltar de pescar siris;

e vejo-o, ainda maior,

pelo imenso lamarão

fazendo dos dedos iscas

para pescar camarão.

— Atenção peço, senhores,

também para minha leitura:

também venho dos Egitos,

vou completar a figura.

Outras coisas que estou vendo

é necessário que eu diga:

não ficará a pescar

de jereré toda a vida.

Minha amiga se esqueceu

de dizer todas as linhas;

não pensem que a vida dele

há de ser sempre daninha.

Enxergo daqui a planura

que é a vida do homem de ofício,

bem mais sadia que os mangues,

tenha embora precipícios.

Não o vejo dentro dos mangues,

vejo-o dentro de uma fábrica:

se está negro não é lama,

é graxa de sua máquina,

coisa mais limpa que a lama

do pescador de maré

que vemos aqui, vestido

de lama da cara ao pé.

E mais: para que não pensem

que em sua vida tudo é triste,

vejo coisa que o trabalho

talvez até lhe conquiste:

que é mudar-se destes mangues

daqui do Capibaribe

para um mocambo melhor

nos mangues do Beberibe.

As ciganas prevêem o futuro do menino, uma boa e a outra má. Uma delas, a má, dá ao menino a leitura de um destino trágico: será pobre, fazendo dos dedos iscas/para pescar camarão, para sempre atrelado ao lamarão dos mocambos; mas a cigana boa prediz-lhe um futuro melhor, porque o que vê não é lama que o envolva, "mas graxa"de alguma fábrica, o que equivale a dizer que ele ascenderá socialmente.

FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES ETC.
— De sua formosura

já venho dizer:

é um menino magro,

de muito peso não é,

mas tem o peso de homem,

de obra de ventre de mulher.

— De sua formosura

deixai-me que diga:

é uma criança pálida,

é uma criança franzina,

mas tem a marca de homem,

marca de humana oficina.

— Sua formosura

deixai-me que cante:

é um menino guenzo

como todos os desses mangues,

mas a máquina de homem

já bate nele, incessante.

— Sua formosura

eis aqui descrita:

é uma criança pequena,

enclenque e setemesinha,

mas as mãos que criam coisas

nas suas já se adivinha.

— De sua formosura

deixai-me que diga:

é belo como o coqueiro

que vence a areia marinha.

— De sua formosura

deixai-me que diga:

belo como o avelós

contra o Agreste de cinza.

— De sua formosura

deixai-me que diga:

belo como a palmatória

na caatinga sem saliva.

— De sua formosura

deixai-me que diga:

é tão belo como um sim

numa sala negativa.

— É tão belo como a soca

que o canavial multiplica.

— Belo porque é uma porta

abrindo-se em mais saídas.

— Belo como a última onda

que o fim do mar sempre adia.

— É tão belo como as ondas

em sua adição infinita.

— Belo porque tem do novo

a surpresa e a alegria.

— Belo como a coisa nova

na prateleira até então vazia.

— Como qualquer coisa nova

inaugurando o seu dia.

— Ou como o caderno novo

quando a gente o principia.

— E belo porque com o novo

todo o velho contagia.

— Belo porque corrompe

com sangue novo a anemia.

— Infecciona a miséria

com vida nova e sadia.

— Com oásis, o deserto,

com ventos, a calmaria.



O menino é saudado pelos vizinhos, amigos. Todos trazem presentes e o comparam às coisas boas da vida. Embora ele seja um menino magro, "tem peso de homem"; criança franzina é , mas "tem a marca de homem". E é belo como tudo que os cerca. De todos os versos, ressaltam-se:

"belo como uma coisa nova/ na prateleira até então vazia"

"Belo como um caderno novo/quando a gente principia."



metáforas das necessidades fundamentais do homem: o alimento e a educação.

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA


— Severino retirante,

deixe agora que lhe diga:

eu não sei bem a resposta

da pergunta que fazia,

se não vale mais saltar

fora da ponte e da vida;

nem conheço essa resposta,

se quer mesmo que lhe diga;

é difícil defender,

só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela é

esta que vê, severina;

mas se responder não pude

à pergunta que fazia,

ela, a vida, a respondeu

com sua presença viva.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida severina.



Terminada a festa, seu José mestre carpina vem falar com Severino. O diálogo final é de uma beleza rara: o que vale a vida, mesmo que ela seja como a do menino? Como a de Severino?




QUESTÕES SOBRE MORTE E VIDA SEVERINA

1. (FUVEST)


Só os roçados da morte

compensam aqui cultivar,

e cultivá-los é fácil:

simples questão de plantar;

não se precisa de limpa,

de adubar nem de regar;

as estiagens e as pragas

fazem-nos mais prosperar;

e dão lucro imediato;

nem é preciso esperar

pela colheita: recebe-se

na hora mesma de semear.

(João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina)


Nos versos acima, a personagem da “rezadora” fala das vantagens de sua profissão e de outras semelhantes. A seqüência de imagens neles presente tem como pressuposto imediato a idéia de:

a) sepultamento dos mortos.

b) dificuldade de plantio na seca.

c) escassez de mão-de-obra no sertão.

d) necessidade de melhores contratos de trabalho.

e) técnicas agrícolas adequadas ao sertão.



2. (FUVEST-SP)

Decerto a gente daqui

jamais envelhece aos trinta

nem sabe da morte em vida,

vida em morte, severina; (João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina)



Neste excerto, a personagem do “retirante” exprime uma concepção da “morte e vida severina”, idéia central da obra, que aparece em seu próprio título. Tal como foi expressa no excerto, essa concepção só NÃO encontra correspondência em:

a) “morre gente que nem vivia”.

b) “meu próprio enterro eu seguia”.

c) “o enterro espera na porta:/ o morto ainda está com vida”.

d) “vêm é seguindo seu próprio enterro”.

e) “essa foi morte morrida ou foi matada?”.


3. (FEI-SP) Leia o texto com atenção e responda à questão.

— O meu nome é Severino

não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

há muito na freguesia,

por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem fala

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da Serra da Costela,

limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias

mulheres de outros tantos,

já finados, Zacarias,

vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas,

e iguais também porque o sangue

que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).

(João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina)



É possível identificar nesse excerto características:



a) regionalistas, uma vez que há elementos do sertão brasileiro.

b) vanguardistas, pois o tratamento dispensado à linguagem é absolutamente original.

c) existencialistas, pois há a preocupação em revelar a sensação de vazio do homem do sertão.

d) naturalistas, porque identifica-se em Severino as características típicas do herói do século XIX.

e) surrealistas, já que existe uma apelação ao onírico e ao fantástico.



4. (CEFET) Assinale a alternativa INCORRETA sobre “Morte e Vida Severina”:


a) Apesar das dificuldades que se anunciam para o filho do Seu José, a perspectiva do final do poema é positiva em relação à vida.

b) Existe no poema um grande contraste causado pelo nascimento do filho do Seu José em relação à figura da morte, presente em toda a obra.

c) O adjetivo Severina, do título, tanto se refere ao nome do personagem central como às condições severas em que ele, como tantos outros, vive.

d) A indicação auto de natal não se refere somente ao sentido de religiosidade, mas também à aceitação do poder de renovação que existe na própria natureza.

e) Como em muitas outras obras de tendência regionalista, o tema central do poema é a seca nordestina e a miséria por ela criada.



5. (CEFET) Leia as seguintes afirmações sobre Morte e Vida Severina:



I) O nascimento do filho do compadre José é antagônico em relação aos outros fatos apresentados na obra, já que esses são marcados pela morte.

II) Podemos dizer que o conteúdo é completamente pessimista, considerando-se que a jornada é marcada pela tragédia da seca, o que leva Severino à tentativa de suicídio.

III) Mais do que a seca, as desigualdades sociais do Nordeste são o tema da obra.



Assinale a alternativa correta sobre as afirmações:



a) Somente I e II estão corretas.

b) Somente I e III estão corretas.

c) Somente II e III estão corretas.

d) As três estão corretas.

e) As três estão incorretas.



6. (POLI) O trecho abaixo é um fragmento de Morte e vida severina, poema escrito por João Cabral de Melo Neto. O poema conta a história de Severino, um retirante que foge da seca, saindo dos confins da Paraíba para chegar ao litoral de Pernambuco (Recife). Lá, o retirante acredita que irá encontrar melhores condições de vida. Este excerto (trecho) conta o momento em que, no final de sua caminhada, Severino chega ao litoral. Mas, mesmo ali, encontra apenas sinais de morte, como quando estava no sertão. Completamente desacreditado, sugere a um morador da região que pretende o suicídio. Então, inicia com ele uma discussão. Acompanhe:



"- Seu José, mestre Carpina

Para cobrir corpo de homem

Não é preciso muita água.

Basta que chegue ao abdômen

Basta que tenha fundura igual a de sua fome.

- Severino retirante,

O mar de nossa conversa

Precisa ser combatido

Sempre, de qualquer maneira.

Porque senão ele alaga e destrói a terra inteira.



- Seu José, mestre Carpina,

Em que nos faz diferença

Que como frieira se alastre,

Ou como rio na cheia

Se acabamos naufragados

num braço do mar da miséria?"

(trecho tirado de teatro representado no Tuca)



O argumento central de Severino para defender sua intenção de suicidar-se é:

a) o de que o rio, tendo fundura suficiente, será o melhor meio, naquela situação, para conseguir seu intento.

b) o de que não é possível lutar com as mãos, já que as mãos não podem conter a água que se alastra.

c) o de que não é possível conter o mar daquela conversa, dada sua extensão e volume.

d) o de que a miséria, entendida como mar, irá naufragar mesmo a todos, independentemente do que se faça.

e) o de que abandonando as mãos para trás será mais fácil afogar-se, já que não poderá nadar.



7. (IBMEC) Utilize o texto abaixo, fragmento de Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, para responder o teste.

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,

não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria.

Deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias. 10

Mas isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem fala

Ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.


(CAMPESTRINI, Hildebrando. Literatura Brasileira. São Paulo: FTD, 1989, p. 197-8)


Assinale a alternativa incorreta com relação ao texto de João Cabral de Melo Neto:

a) A expressão “pia”(segundo verso) refere-se à pia batismal e traz o sentido de que o personagem não tem outro nome de batismo.

b) A filiação paterna, a partir do nome Zacarias, não constitui ponto de referência para o personagem.

c) O personagem não foi batizado por ser santo de romaria e ter a paternidade desconhecida.

d) A expressão “senhor desta sesmaria” refere-se a posse de terras.

e) Fazendo uso do pronome de tratamento “Vossas Senhorias”, o personagem coloca o interlocutor numa posição hierarquicamente superior.

8. (FUVEST) É correto afirmar que, em Morte e Vida Severina:

a) A alternância das falas de ricos e de pobres, em contraste, imprime à dinâmica geral do poema o ritmoda luta de classes.

b) A visão do mar aberto, quando Severino finalmente chega ao Recife, representa para o retirante aprimeira afirmação da vida contra a morte.

c) O caráter de afirmação da vida, apesar de toda a miséria, comprova-se pela ausência da idéia de suicídio.

d) As falas finais do retirante, após o nascimento de seu filho, configuram o “momento afirmativo”, por excelência, do poema.

e) A viagem do retirante, que atravessa ambientes menos e mais hostis, mostra-lhe que a miséria é a mesma, apesar dessas variações do meio físico.



9. (FUVEST) É correto afirmar que no poema dramático Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto:


a) A sucessão de frustrações vividas por Severino faz dele um exemplo típico de herói moderno, cuja tragicidade se expressa na rejeição à cultura a que pertence.

b) A cena inicial e a final dialogam de modo a indicar que, no retorno à terra de origem, o retirante estarámunido das convicções religiosas que adquiriu com o mestre carpina.

c) O destino que as ciganas prevêem para o recém-nascido é o mesmo que Severino já cumprira ao longode sua vida, marcada pela seca, pela falta de trabalho e pela retirada.

d) O poeta buscou exprimir um aspecto da vida nordestina no estilo dos autos medievais, valendo-se daretórica e da moralidade religiosa que os caracterizam.

e) O “auto de natal” acaba por definir-se não exatamente num sentido religioso, mas enquanto reconhecimento da força afirmativa e renovadora que está na própria natureza.



10. (PUCCamp) A leitura integral de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, permite a correta compreensão do título desse “auto de natal pernambucano”:

a) Tal como nos Evangelhos, o nascimento do filho de Seu José anuncia um novo tempo, no qual aexperiência do sacrifício representa a graça da vida eterna para tantos “severinos”.

b) Invertendo a ordem dos dois fatos capitais da vida humana, mostra-nos o poeta que, na condição “severina”, a morte é a única e verdadeira libertação.

c) O poeta dramatiza a trajetória de Severino, usando o seu nome como adjetivo para qualificar asublimação religiosa que consola os migrantes nordestinos.

d) Severino, em sua migração, penitencia-se de suas faltas, e encontra o sentido da vida na confissão final que faz a Seu José, mestre capina.

e) O poema narra as muitas experiências da morte, testemunhadas pelo migrantes, mas culmina com a cena de um nascimento, signo resistente da vida nas mais ingratas condições.

11. (UEL) Em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, a palavra "severino(a)" apresenta-se como substantivo próprio, substantivo comum e adjetivo. Tal fato ocorre porque, nessa obra, a palavra "severino(a)":

a) Designa aquele que fala, além de outras personagens que, em virtude das dificuldades impostas pela vida, caracterizam-se por assumir a disciplina como norma de conduta. O termo qualifica a existência como permanente cuidado de não se expor a repreensões e censuras.

b) Designa a individualidade austera do protagonista e a individualidade flexível de outros homens e mulheres escorraçados do sertão pela seca. O termo qualifica a existência como busca constante de superação das dificuldades.

c) Designa o protagonista como ser inflexível, bem como outros retirantes que também se caracterizam pela rigidez diante da vida. O termo qualifica a existência como possibilidade de impor condições com rigor.

d) Designa aquele que fala, além de outros homens e mulheres que se caracterizam pelo rigor consigo mesmos e com os outros. O termo qualifica a existência humana como marcada pela austeridade nas opiniões.

e) Designa aquele que fala, o protagonista do auto, bem como os retirantes que, como ele, foram escorraçados do sertão pela seca e da terra pelo latifúndio. O termo qualifica a existência como realidade dura, áspera.



12. (UFOP) A partir da leitura de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, é correto afirmar que:

a) trata-se de um texto exclusivamente narrativo, uma vez que traz o relato dos episódios de uma viagem da personagem Severino do sertão até o mar.

b) trata-se de um texto exclusivamente dramático, uma vez que é composto de falas das personagens, além de comportar rubricas com marcações cênicas bastante nítidas.

c) trata-se de um texto exclusivamente lírico, uma vez que apresenta o discurso individual de Severino, que fala de si todo o tempo.

d) trata-se de um texto cuja classificação é de tragédia pura e simples.

e) trata-se de um texto cujo gênero é múltiplo, por não se prender exclusivamente a nenhum.


13. (UFOP) A respeito de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, é incorreto dizer que:

a) a mudança de categoria gramatical (substantivo / adjetivo) do nome Severino / Severina corresponde certamente a uma mudança na categoria social do protagonista.

b) Morte e vida severina poderia intitular-se Vida e morte severina pelo desenvolvimento da narrativa.

c) o texto adquire dimensões universais, por ampliar significativamente o drama dos desvalidos, apesar de apresentar um tema eminentemente regional.

d) uma sensível diferença existe no ritmo da narrativa: o da viagem, lento e arrastado, correspondendo à morte, e o do auto natalino, mais leve e ágil, correspondendo à vida.

e) as formas discursivas presentes no texto são diversas, notadamente os monólogos, diálogos, lamentos e elogios.



14. (UNIOESTE) Em relação à peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, todas as afirmativas abaixo são válidas, EXCETO

A) O fato em Morte e Vida Severina que comprova o subtítulo “auto de Natal” do poema-peça é o nascimento de um menino.

B) Em Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto apresenta uma atitude de resignação e conformismo ante as desgraças e desesperos dos muitos Severinos.

C) O êxodo do sertão em busca do litoral não é uma solução para o retirante, pois na cidade grande encontra sempre a mesma morte severina, como revelam os dois coveiros.

D) Na cidade grande, quando não encontra uma morte severina, tem que levar uma vida severina, vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha em mocambos infectos.

E) A problemática apresentada em Morte e Vida Severina é basicamente de caráter social e envolve a caótica e degradante situação do homem nordestino, vitimado pelas secas, pela fome e pela miséria.

3 comentários:

  1. Professor, por favor coloca o gabarito das questões e o resumo de (in)comodos de(versos)

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  2. A análise e as questões estão legais!
    E na minha opinião acho que a resposta da 1ª questão é a letra A, e não a letra B!

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  3. obrigada me ajudou muito .....

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