quarta-feira, 25 de maio de 2011

Srtª. FÊ e Dr. Murilo - O encontro de gerações

APROPRIO-ME DE UM TEXTO DA ESCRITORA FERNANDA ALENCAR, SOBRE AS "IMPRESSÕES" QUE ELA TEVE AO CONHECER DR. MURILO EM SETEMBRO DE DE 2009. PUBLICADO EM SEU BLOG AQUELA ÉPOCA.  

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Tarde demais.


Meu pai há dois dias só falava no doutor, tanto sobre sua casa aconchegante quanto na sua personalidade cativante.

Não sei se por conta disso, mas antes mesmo de conhecê-lo eu gostei do que foi me contado sobre ele. E por conta do simplório da ideia de reunião entre amigos, que são convidados a dormirem, comerem, beberem, recitarem e acordarem durante alguns dias na sua casa, em troca do prazer da consideração, eu me lembrei de cinco bonecas adultas que eu tinha e sempre as reunia com suas famílias de plástico imaginando um dia ser assim, e como ele, eu me vi.
Nós chegamos umas onze da manhã, fomos abordados por todo o pessoal que lá estava como se muito nos admirassem. O Dr. Murilo logo recitou rimas agradáveis e bem humoradas, no começo, pensei até que fosse para provar sua boa memória, mas depois percebi que é como beber água.

Quando eu me sentei, ele passou por mim e com o polegar e o indicador encostou em mim. No meio do que separa meus olhos em dois, aquela distância que abaixo fica o nariz e acima a testa. Fiquei super curiosa com o gesto, acho que ninguém nunca deu importância a essa região do meu rosto e creio que devo tê-la tocado quando o cabeleireiro corta minha franja, para uma coçadinha, raras vezes. Ele se sentou do meu lado e ficou conversando com meu pai estórias (ou mentiras, segundo alguns dos sorridentes amigos reunidos) interessantíssimas.

"O tempo nos marca com tinta, tinta branca nos cabelos." ele falou, me fazendo reparar o branco dos cabelos dele. Contou sobre seu passado, sobre o regime militar, e quando fazia partos na cidade de Carolina, falou que foi confudido com gente do partido comunista, que vai ganhar idenização por isto agora, e que muitos médicos foram assassinados na época. Perguntou se estávamos a vontade, ofereceu bebida, falou de Lampião. Aliás, vi que ele é louco por figuras históricas.

O almoço foi uma delícia, o sorvete no final caiu bem, e eu e minha irmã fomos para o chalé que tinha redes e camas ao ar livre. Conversar, é o que mais sacia saudade. E lá, começamos conversando tudo que duas adolescentes normais não teriam muito interesse, desconfio até que a Nina me olhou estranho, às vezes como se auto conhecesse no que eu dizia, outras em como deveríamos aproveitar do que poderíamos ser de bestas nessa fase da vida. Nos atualizamos uma da vida da outra, dos sonhos e decepções, das neuras e divagações, das pessoas que temos em comum e as que agora não temos.

Papai nos chamou para vermos com o pessoal, o museu do Dr. Murilo. Lá havia armas, punhais, queixadas, restos de natureza petrificada e sugestivas, fotos, uma carta de Guimarães Rosa, livros com aquele cheiro de papel guardado e pedindo para serem corrompidos.

Tinha também pedras, o Dr. me puxou pelo cotovelo, e disse: "Você. Que é uma menina curiosa, abra sua mão." E eu abri. Colocou uma pedra redondinha, marrom, lisinha e disse: "É uma pedra quase perfeita, encontrei ontem no rio." ("Não sabia que as pedras também queriam ser perfeitas." refleti comigo mesma.)

Achei fascinante, e ele sorriu do meu "olha" impressionada como se entendesse toda minha essência de sensibilidade para essas coisas. Mostrou outras pedras e no formato delas me revelou o que via, em cada interpretação dele, eu sorria mais admirada porque ligeiramente foi inusitado encontrar alguém tão perto do que eu faço também.

"O que você vê nessa?" ele me disse entregando outra pedra. Tentei interpretá-la, virei-a e quase que imperceptíveis, vi sinais dourados no cantinho, porém, disse "Hãm...não sei."

"Olhe, esses sinais, são sinais de ouro.", não dei muita importância e atraída pela parede perguntei "Essa arma está carregada?", "Não, não..." respondeu percebendo meu interesse, e me entregando o revólver na mão, "É de 1945. Matou muitos judeus por alemães nazistas."

(Imaginei aquelas bicamas e uniformes listrados) quando firmei minha mão no revólver senti uma enorme sensação de poder e apontei para papai que quando pegou comentou a sensação também. Nina tirou fotos, e por curiosidade botei o gatilho na cabeça.

"Opa, na cabeça só se o gatilho for virado para baixo." Falou o Dr. me tomando a arma como se desejasse a vida por mais tempo.

Isso me fez pensar que, talvez, aos 70, nós nos aproximamos, nem que seja rastejantes, ao viver, e já que tudo se é percebido com mais maturidade, pude sentir que estar vivo ainda é melhor que ser morto.

Ele saiu mostrando as pessoas outras relíquias e eu fui para a estante dos livros com a cabeça torta para ler os títulos rápidos.

A mulher dele (inclusive a oitava, pois ele já teve muitos casamentos) distribuiu xícaras de café para todos, dessa vez não beijei a xícara ansiosa pelo café como costumo fazer e queimar a ponta da língua, eu esperei até poder não me machucar.

O mais estranho e incrivelmente interessante é que me senti atraída por tudo aquilo, e por todo aquele. É que daquela pele manchada e marcada pelo tempo, aqueles olhos azuis lacrimejando através dos óculos e os bigodes cinzas cujo lábio superior jamais foi visto por mim, eu vi alguém tão meticulosamente lá dentro cheia de graça, de ciência, de fluxos de comportamentos e criatividade certeiros aos meus, que até o humor sadio dele me deixou injustiçada. Injuriada. Apaixonada.

Setenta. Sempre gostei do sete, mas nunca pensei que acompanhado do zero me traria sensações de conhecer tão bonitas e ardentes. Nos despedimos com um abraço e uma pergunta,

" E...você anda fazendo?"
"Jornalismo."
e posso dizer que por dois longos segundos, me transitei a uma sensação de desencontro covardemente imensa.

Poderia ter sido tão perfeito... entretanto, sobrou o impossível - e ali interligados- entre nós.
 
FERNANDA DE ALCANTARA ALENCAR

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